Desde os anos 70 do século XX, a reestruturação do capitalismo envolveu mudanças profundas na operação das empresas, na integração dos mercados e na soberania do Estado. Em primeiro lugar, a empresa oligopolista, “conglomerada” e “verticalizada” desmontou a velha estrutura e concentrou-se na “atividade principal”. A nova empresa assumiu a função “integradora” no comando de uma rede de fornecedores. Em segundo lugar, as decisões empresariais estratégicas foram submetidas ao “comando sistêmico” de poucas instituições financeiras. Em terceiro lugar, sob os auspícios do capital financeiro, ocorreu a centralização do capital à escala mundial, o que envolveu a vitória do “valor do acionista” sobre as “ultrapassadas” estratégias de crescimento da firma apoiada no investimento produtivo via lucros retidos. Neste texto, vamos detalhar tais transformações e discutir suas implicações.
A “desconglomeração” e a centralização da estrutura produtiva ocorreram em conjunto com profunda reorganização empresarial, levando a uma redução drástica do número de empresas. Toda a economia mundial passou a ser dominada por pouquíssimas empresas, em geral, de países desenvolvidos. O setor de equipamentos de telefonia móvel, por exemplo, é dominado por três empresas, o farmacêutico por 10 empresas e o de aviões comerciais de grande porte por apenas duas. Em termos do gasto com pesquisa & desenvolvimento, a concentração é semelhante: apenas 100 grandes empresas concentram 60% do gasto em P&D, sendo 2/3 dos gastos realizados em apenas três setores (informática, farmacêutico e automotivo.)
Concentrando seus recursos no core business (marca, marketing, design, pesquisa & desenvolvimento – P&D), as grandes empresas ganharam dimensão global através de fusões e aquisições e se tornaram integradoras de cadeias globais de produção terceirizadas. A empresa integradora se desverticalizou, vendendo ativos e terceirizando atividades, e forçou seus fornecedores a também ganharem escala mundial e a se fundirem, num grande efeito cascata. Um exemplo eloquente é a Boeing. O 787 Dreamliner foi projetado integralmente em computadores, mas sua produção foi largamente terceirizada: 70% dos 2,3 milhões de componentes foram produzidos por 50 empresas em diversos países. Isto não significa que houve perda de controle sobre a produção, já que a Boeing, gerenciava em tempo real os fornecedores, os fornecedores dos próprios fornecedores, sincronizava pagamentos, estoques, prazos etc. Ou seja, mantinha estrito controle sobre as terceirizadas.
Em seu impulso para a “desterritorialização”, as empresas deslocaram a produção para as regiões em que prevalecem baixos salários, câmbio desvalorizado, baixa tributação. Nos 40 anos de globalização, as empresas dos países centrais cuidaram de separar os componentes de sua atividade globalizada: a) Wall Street e a City londrina abrigam as 20 maiores instituições financeiras que “administram” os ativos globais; b) na China e adjacências, predomina a formação de nova capacidade produtiva; c) nos paraísos fiscais, a captura dos resultados.
O sistema financeiro também passou por transformações de monta, graças à globalização e à desregulamentação. Nas últimas décadas, as ondas de fusões e aquisições elevaram o grau de centralização: os 25 maiores bancos do mundo tinham 28% dos ativos dos 1.000 maiores bancos em 1997; em 2009, mais de 45%. Dos US$ 4 tri de transações diárias com moedas, 52% delas são realizadas pelos 5 maiores bancos. No que tange aos bancos de investimento, os 10 maiores concentram 53% das receitas. Baseados principalmente nos 10% mais ricos, que geram 80% de suas receitas, os bancos se conglomeraram e se tornaram verdadeiros supermercados financeiros, capazes de oferecer todo tipo de serviço financeiro a pessoas físicas e jurídicas. O setor financeiro também se destaca no que se refere ao gasto em P&D. O investimento em TI (internet, caixas eletrônicos, servidores) alcançou US$ 380 bi em 2006.
Foram os bancos, através das transações eletrônicas online, que permitiram a integração financeira das cadeias globais de valor. Os bancos são a cola do sistema ao fazer 95% de toda a movimentação financeira: transações cambiais, hedge, pagamentos, transações comerciais, investimentos.
No resto do sistema financeiro, o grau de concentração também mudou de escala: US$ 64 tri em 2010 estavam nas mãos dos gestores de ativos, sendo que os 50 maiores tinham 61% do total e o BlackRock, o maior, mais US$ 3,3 tri em ativos. Os fundos de investimento levaram a enorme centralização da propriedade ao adquirem participação nos mais diversos negócios. Apenas com o intuito de que a administração se submeta à lógica do EBITDA, a da geração do máximo de caixa possível e a busca incessante da valorização acionária. A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou as compras das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados.
J. Glattfelder, em Decoding Complexity – Uncovering Patterns in Economic Networks, desvela a concomitância entre a constituição das cadeias globais de valor e a centralização do controle da produção e da riqueza em poucas grandes empresas e instituições da finança “mundializada”. 36% das grandes transnacionais detêm 95% das receitas operacionais das 43.000 empresas transnacionais conhecidas. Mais importante: os 737 principais acionistas, instituições financeiras e fundos de investimento dos Estados Unidos e do Reino Unido podem controlar 80% do valor delas.
A convergência entre a centralização do controle pela finança, a fragmentação espacial da produção e a centralização do capital financeiro tem suscitado sucessivos layoffs. A migração das empresas para países “mais baratos” desatou a “arbitragem” com os custos salariais e a “flexibilização” das relações de trabalho imposta pela automação na indústria e nos serviços. A flexibilização subordinou o crescimento ou manutenção da renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. Assim, a grande empresa contemporânea move a economia capitalista na direção da concentração da riqueza e da renda, falhando em sua capacidade de gerar empregos, de oferecer segurança aos que consegue empregar ou de alentar os empregados com perspectivas melhores.
Move também os Estados Nacionais na direção dos festejados tratados de livre comércio. O Tratado TransPacífico é uma tentativa de submeter o espaço jurídico-político constituído pelos Estados Nacionais ao “novo mercantilismo” da grande empresa transnacional. Dispersa geograficamente, mas extremamente concentrada sob o controle dos megabancos e de seus fundos mútuos e fundos de pensão. O tratado estabelece uma dualidade nos sistemas legais ao atribuir às empresas novos direitos para escapar das leis nacionais e processar os governos por eventuais prejuízos. Nada de intromissões e intervenções indevidas ou abusivas. O Capitalismo de Estado já era. Transfigurou-se no Estado do Capitalismo.
* NOLAN, Peter & ZHANG, Jin. Global Competition after Financial Crisis. New Left Review, 64, julho-agosto de 2010.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp
Davi Nardy Antunes – Doutor em economia pela Unicamp e professor da Facamp