Paul Krugman distribuiu cacetadas lógicas nos adeptos da austeridade. Segundo o colunista do New York Times, os “austeros” equiparam o problema da dívida nacional de uma economia aos problemas da dívida de uma família. Se uma família acumulou dívidas demais, deve apertar os cintos. Os governos não devem fazer o mesmo?
A resposta de Krugman: uma economia não é uma família endividada. “Nossa dívida (privada) consiste principalmente de dinheiro que devemos uns aos outros; ainda mais importante, nossa renda provem, principalmente, de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é minha renda e meu gasto é sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo reduzir gasto simultaneamente, a fim de reduzir suas dívidas? Resposta: a renda cai.”
Quando se trata de cuidar do funcionamento da economia como um todo, ou seja, de questões ditas macroeconômicas, os vícios do senso comum e do individualismo metodológico levam a recomendações suicidas de política econômica, como as oferecidas por Meirelles & Cia.
As trapalhadas começam com a definição da chamada macroeconomia como “a economia dos agregados”. Nessa visão apologética, a “agregação” dos comportamentos individuais racionais leva necessariamente ao equilíbrio do conjunto da economia, o que torna nocivas as intervenções dos governos. Não por acaso, os economistas da corrente principal se empenham com denodo na descoberta dos fundamentos microeconômicos da macroeconomia, assim como os alquimistas buscavam a pedra filosofal. Essa proeza intelectual pretende convencer os incautos de que o movimento do “macro” é resultado da agregação das decisões no âmbito “micro”.
Keynes, o fundador da macroeconomia, escreve nos manuscritos preparatórios da Teoria Geral de 1933 que a Economia Monetária da Produção funciona segundo o circuito “macro” do dinheiromercadoria-dinheiro, D-M-D’, “a profícua descoberta de Karl Marx”. Ele utiliza Marx com o propósito de afirmar o caráter “originário” das decisões de gasto monetário do conjunto da classe capitalista, num triplo sentido: 1) a propriedade das empresas e o acesso ao crédito conferem a essa classe social a faculdade de gastar acima de sua renda (lucros) corrente; 2) as decisões de gasto na produção corrente e na formação de nova capacidade (investimento) criam o espaço de valor (a renda nominal da economia como um todo), mediante o pagamento dos salários e geração de lucros sob a forma monetária. 3) a “criação” da renda e do lucro gera os fluxos de consumo e de poupanças. Estas últimas se encarnam em reinvindicações genéricas à riqueza e à renda futura – a massa de ativos financeiros formados pelo rastro de dívidas e pelos direitos de propriedade, ambos avaliados diariamente em mercados organizados.
Contemporaneamente a Keynes, o economista polonês Michael Kalecki valeu-se dos esquemas de reprodução de Marx para formular o princípio da demanda efetiva. Kalecki investiga as condições de reprodução da economia composta de três macrodepartamentos: bens de consumo dos trabalhadores, bens de produção e bens de consumo dos capitalistas. Ao utilizar os esquemas de reprodução, Kalecki procura mostrar que o princípio da demanda efetiva já está posto no volume III de O Capital. Aí Marx distingue as condições de produção do valor das condições de sua realização. As primeiras dependem da capacidade produtiva da sociedade, as segundas decorrem da disposição dos capitalistas de renovar o circuito de valorização do capital-dinheiro, D-M-D’.
Assim, ao comentar a equação: “Lucros Brutos = Investimento Bruto + Consumo dos Capitalistas”, Kalecki se pergunta sobre o seu significado: “Significa ela, por acaso, que os lucros, em um dado período, determinam o consumo e o investimento dos capitalistas, ou o inverso disto? A resposta a esta questão depende de se determinar qual destes itens está sujeito diretamente às decisões dos capitalistas. Fica claro, pois, que os capitalistas podem decidir consumir e investir mais em um dado período, do que no precedente. Mas eles não podem decidir ganhar mais. São, portanto, suas decisões de investimento e consumo que determinam os lucros, e não vice-versa”.
As análises de Keynes e de Kalecki podem ser aplicadas às decisões de gasto do governo: as autoridades podem decidir gastar mais ou menos, mas não podem determinar o resultado fiscal. Déficits ou superávits vão depender da resposta do setor privado ao estímulo do gasto público. Se o governo corta o gasto em uma conjuntura de desalavancagem do setor privado –empresas e famílias – a queda da renda “agregada” vai inexoravelmente levar a uma trajetória perversa dos déficits e das dívidas públicas e privadas, com efeitos indesejáveis sobre os bancos financiadores. Essas são as lições da crise europeia.
Nos debates que se seguiram à publicação da Teoria Geral, Keynes não conseguiu demonstrar a seus críticos e comentadores – Hayek e Hicks entre eles – que o princípio da demanda efetiva era uma ruptura radical com os postulados da chamada teoria clássica. Na tentativa de não assustar a tigrada e a si mesmo, Keynes, enfant terrible do establishment britânico, refugiou-se numa argumentação contemporizadora que escondeu a natureza revolucionária do conceito de demanda efetiva. Keynes procurou traduzir para a linguagem de seus críticos a inversão radical produzida nas relações de determinação entre os fluxos de gasto e renda, investimento e poupança. Não sublinhou com a ênfase devida as consequências da avaliação nos mercados financeiros dos estoques de dívida e de direitos de propriedade (rastros da riqueza já criada) sobre as decisões de gasto das empresas, das famílias e dos governos.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp