Gerald Epstein publicou há poucos dias um estudo cuidadoso e interessante sobre o desempenho do sistema financeiro americano, após a febre da desregulamentação. Economista da Universidade de Massachussets, Epstein faz uma avaliação dos benefícios (ou malefícios) sociais e econômicos causados pelas práticas da nova finança.
O estudo começa por estabelecer critérios para a avaliação de um sistema financeiro saudável: 1) está comprometido com o financiamento do investimento produtivo; 2) ajuda as famílias a poupar e canaliza recursos para a educação superior e para as aposentadorias; 3) desenha produtos destinados a reduzir o risco, cria instrumentos para prover liquidez e administra um sistema de pagamentos eficiente; 4) gera inovações para que esses objetivos sejam alcançados com custo razoáveis para empresas e famílias.
Para Epstein, essas funções são cruciais para o funcionamento estável e produtivo das economias de mercado. “Mas, após décadas de desregulamentação, o sistema financeiro americano transformou-se em um setor altamente especulativo que fracassou espetacularmente na consecução de suas tarefas”.
Em seguida, o autor pergunta, de forma um tanto retórica: quanto esse sistema fracassado custou para a economia americana. Qual o preço cobrado às famílias, contribuintes, empresários no exercício dessas questionáveis atividades?
O estudo analisa três componentes desses custos: (1) rentismo e lucros excessivos decorrentes de poder de mercado; (2) má alocação de recursos, fruto da concentração de operações dentro do próprio sistema financeiro; and (3) custo sociais e econômicos produzidos pela crise de 2008.
“Para o período 1990-2023, nossos cálculos estimam em US$ 23 trilhões os custos excessivos impostos à economia americana por um sistema financeiro que, em sua forma atual, é um sorvedouro líquido de recursos.”
Tenho um pé atrás com tais estimativas. Sou obrigado a concordar, porém, com os critérios estabelecidos para a avaliação da funcionalidade ou da “utilidade” de tais sistemas financeiros.
Dizem os entendidos que nos anos 50-70 do século XX, etapa da “repressão financeira”, as políticas monetárias e de crédito eram orientadas no sentido de garantir condições favoráveis ao financiamento do gasto produtivo, público ou privado, e atenuar os efeitos da valorização da riqueza não produtiva sobre as decisões de gasto corrente e de investimento da classe capitalista.
As políticas monetárias associadas à “repressão financeira” dos anos 50 e 70 continuaram a ser executadas na etapa de desregulamentação e, assim, prosseguiram no afã de sustar a recorrência de crises de deflação de ativos e de “desvalorização do capital”. Os mercados passaram a cultivar a percepção de que as perdas seriam limitadas.
As ações de estabilização dos bancos centrais e dos Tesouros construíram as bases para o avanço do processo de financeirização. Os títulos da dívida pública americana, sem risco e de pronta liquidez, permitiram a formação de pirâmides de ativos securitizados e hierarquizados conforme a relação risco/liquidez. As técnicas de alavancagem destinadas a elevar os rendimentos das carteiras de ativos deram força aos episódios de formação de bolhas.
A abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio flutuantes que transformaram as moedas nacionais em “ativos”. As flutuações das moedas ensejaram oportunidades de arbitragem e especulação ao capital financeiro internacionalizado e tornaram as políticas monetárias e fiscais domésticas dos ditos emergentes reféns da volatilidade das taxas de juros e das taxas de câmbio.
As grandes instituições construíram uma teia de relações “internacionalizadas” de débito-crédito entre bancos de depósito, bancos de investimento e seus fundos. O avanço dessas inter-relações foi respaldado pela expansão do mercado interbancário global. Os bancos de investimento e os demais bancos sombra aproximaram-se das funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos “mercados atacadistas de dinheiro” (wholesale money markets), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e famílias.
Não por acaso, nos anos 2000, a dívida entre as instituições financeiras como proporção do PIB americano cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. O crescimento da dívida intra-financeira às vésperas da crise chegou a 120% do PIB. É “nóis com nóis”, contra o resto.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp