Economia Instituto Logweb – O DINHEIRO E SUAS PERIPÉCIAS

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp

 

Os economistas são incansáveis em sua missão de neutralizar e naturalizar o dinheiro. As relações de troca entre os indivíduos racionais e utilitaristas são mutuamente vantajosas e também redundam no benefício geral. Nesse mundo de equilíbrio e racionalidade, o dinheiro não pode ser admitido como um objeto que polariza o desejo e obriga os indivíduos racionais a decisões insensatas. É inadmissível um objeto que absorve em si mesmo toda a utilidade e, assim, compromete as condições da escolha racional.

A insistência em naturalizar o dinheiro e transformá-lo em um mero numerário e humilde intermediário das trocas de mercadorias choca-se com a formação dos sistemas monetários e de crédito, instituições construídas ao longo da história pela engenhosidade humana. Pior ainda, a malfadada história ensejou o entrosamento entre o sistema de máquinas da Revolução Industrial e o dinheiro criado pelos bancos, acontecimentos que desataram novos desafios ao pensamento econômico. Atormentados por seu desespero “científico”, os economistas da chamada corrente principal se esforçaram e ainda se esforçam para “naturalizar” o dinheiro, o crédito e os bancos.

Disse Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia: “Pode ser um choque para os não economistas, mas os bancos não desempenham qualquer papel nos modelos econômicos padrões utilizados nas últimas duas décadas. Obviamente, se não há bancos, não haveria também bancos centrais, mas a dissonância cognitiva tem raramente abalado a confiança dos bancos centrais em seus modelos. Se os bancos centrais continuarem a empregar modelos equivocados, continuarão a fazer a coisa errada”.

Na narrativa convencional, o intercâmbio de mercadorias e de ativos transcorre, com ligeiras flutuações, nos mercados eficientes informados pelos “fundamentos”. Nos mercados completos para todas as datas, o dinheiro é supérfluo. Os agentes racionais logram maximizar sua função-utilidade, dentro das restrições impostas por sua dotação de recursos reais. No universo newtoniano da modelística, só um desatinado poderia desejar o dinheiro pelo dinheiro. Na dinâmica dessa economia sem dinheiro verdadeiro não há demanda de liquidez.

A economia em que vivemos ou tentamos sobreviver não é uma economia simples “de mercado” ou de intercâmbio de mercadorias. É uma economia monetária e capitalista. Nela as decisões de produção envolvem inexoravelmente a antecipação de dinheiro agora para depois receber mais. A mobilização de recursos reais, bens de capital, terra e trabalhadores depende de operações de crédito, adiantamento de liquidez e assunção de dívidas.

O estabelecimento de direitos e obrigações financeiras vai definir o controle e a propriedade desses recursos. Gastar hoje e pagar amanhã significa que se pode receber algo agora afiançado na promessa de devolver dinheiro no futuro. Supõe-se que a realização de ganhos e lucros viabilize a liquidação de dívidas para assegurar a propriedade do devedor sobre os recursos reais e impedir sua transferência ao credor.

Os bancos criam moeda: ao conceder crédito e aumentar posições em seu ativo (empréstimos) geram passivos, depósitos à vista, utilizados pelos clientes como meios de pagamento. As empresas recorrem aos bancos para financiar o capital de giro. Suas necessidades de caixa são cobertas com adiantamento bancário, ressarcido com juros quando a sua produção girar no mercado e gerar as receitas esperadas. Contas são pagas usando cheques ou cartões de débito, movimentando a conta corrente ou mobilizando o saldo de aplicações com resgate automático.

A crise de 2008 escancarou as relações carnais entre o dinheiro, as finanças públicas e os mercados financeiros privados no capitalismo contemporâneo. A política de inundação de liquidez (quantitative easying) descarregou bilhões nos bancos. O “independente” Federal Reserve utilizou 700 bilhões de dólares públicos para a compra de títulos podres privados. A ampliação dos depósitos à vista não gerou inflação e muito menos engendrou expansão do crédito para a produção, frustrando os adeptos da teoria quantitativa da moeda, a turma da inundação das reservas bancárias por helicóptero.

Os detentores e gestores da riqueza acumulada foram salvos da desvalorização desastrosa dos estoques de ativos, mas refugam estimular o fluxo de crédito para financiar gastos na produção e no emprego. Entupidos de grana, os bancos não emprestam para o investimento e o consumo. A taxa de juros vigente determina o destino e efeitos dos novos depósitos nos bancos, e não o contrário. A fixação do “preço do dinheiro” pelo banco central (taxa de juros básica) tem o propósito de influenciar mudanças na composição dos ativos dos possuidores de riqueza, mudanças intermediadas pelo sistema bancário.

Para que as necessidades pessoais e coletivas sejam satisfeitas, é necessário os detentores do controle do crédito e do investimento seguirem “pedalando”, com a antecipação de recursos na forma de crédito e novas dívidas que financiem projetos capazes de engendrar efeitos multiplicadores no emprego, na renda, nos lucros e nas poupanças, e daí para a liquidação das dívidas. Joseph Schumpeter chamou a teoria que estuda essa engrenagem financeira de Teoria Creditícia da Moeda e não Teoria Monetária do Crédito.

“E o lastro?”, perguntam os da antiga, ainda saudosos do padrão-ouro. Ah sim, a âncora, retrucam os contemporâneos. Diria Hegel que a moeda realiza o seu conceito: é uma instituição social construída sobre os frágeis alicerces da confiança. Fiducia, Credere.

Há moedas e moedas. O dólar é a moeda reserva. Denomina mais de 70% das transações comerciais e financeiras no mundo. O real é uma moeda não conversível. O amigo leitor já ouviu falar de alguma transação celebrada entre um exportador japonês e um importador alemão denominada em reais?

Quando nasceu, o real precisou do amparo do dólar – a âncora cambial. Para ficar cravada no fundo do oceano ainda encapelado, na ressaca da hiperinflação, a âncora contou com a força da Selic, que entre 1995/1998 pagou 22% ao ano, em termos reais, para segurar o rentismo nativo nas fronteiras nacionais. Sacudida pelas crises do México, Ásia e Rússia, a taxa básica foi aos píncaros às vésperas da desvalorização de 1999. Na iminência do enfraquecimento da âncora, exorbitaram as taxas de juros. De nada adiantou, a âncora desgarrou-se.

A política monetária nacional está subsumida à forma de inserção do Brasil na hierarquia entre nações e suas moedas. Podemos continuar acreditando que essa hierarquia é fruto dos maus indicadores fiscais das economias emergentes: superávits primários permitem taxas de juro mais baixas e uma dinâmica mais favorável da dívida pública. Faz sentido, não fosse a intromissão de fatores “externos”.