ECONOMIA INSTITUTO LOGWEB – Piketty e os outros

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp

 

O best-seller de Thomas Piketty, O Capital no Século XX, em sua essência, é uma critica a concorrência dos mercados como um processo em que os “vencedores” merecem suas vantagens de renda e riqueza. Piketty trata, sobretudo, das metamorfoses da riqueza e dos modos de transmissão dos patrimônios privados entre gerações ao longo do desenvolvimento do capitalismo. A caminhada vai desde a predominância da riqueza fundiária – cujo declínio foi imposto pelas forças das políticas mercantilistas e de incentivo à manufatura – até os arranjos contemporâneos apoderados pelo patrimonialismo financeiro e pela concentração do capital nos grandes oligopólios que dominam todos os setores da indústria e dos serviços na arena global.

Os estudos de Piketty sobre o papel da dívida pública na composição da riqueza privada nos primórdios do capitalismo mostram sua importância na transição dos patrimônios imobilizados na terra para a riqueza móvel e líquida, sob a égide do Banco da Inglaterra que mediou as trepidações e expropriações da acumulação primitiva. Em sua peregrinação, Piketty apresenta um conceito de capital que desconsidera as formulações teóricas de Marx a respeito das relações de produção capitalistas e de suas conexões com a natureza das forças produtivas adequadas ao desenvolvimento desse regime de produção. Não importa. Ao agregar as várias modalidades de ativos e discutir as mudanças de sua composição, Piketty mata três coelhos: reafirma a “natureza” do regime do capital como modalidade histórica cujo propósito é a acumulação de riqueza abstrata; abre espaço para a compreensão do capital a juros, do capital fictício e renda da terra, como formas de rendimentos derivados do desdobramento necessário da riqueza capitalista em suas modalidades particulares; demonstra o papel da herança na reprodução e acumulação da riqueza, o que desmente o caráter meritocrático e “competitivo” do enriquecimento alegado pelos liberais.

A desdobrar a riqueza nas formas em que se transmutam ao longo dos três séculos de história do capitalismo, Piketty faz reaparecer no proscênio da vida econômica o caráter crucial da transformação e da concentração da riqueza na geração e na distribuição dos rendimentos dos que dispõem apenas de suas propriedades pessoais para manter sua sobrevivência: a venda de sua força de trabalho, a casa própria, os aparelhos domésticos, o automóvel para se dirigir ao trabalho, etc.

Nos últimos trinta anos, muitos economistas se dedicaram ao estudo das conexões entre as mutações nas formas da riqueza, a concentração do controle do capital “globalizado” sob o comando de grandes bancos e empresas, as gordas remunerações dos executivos, a desmobilização dos sindicatos e o (inevitável) aumento da desigualdade na apropriação da renda gerada pelo esforço coletivo.

Edward Wolff estuda o fenômeno do aumento da desigualdade de renda e de riqueza desde os anos 90. Publicou artigos e livros esclarecedores a respeito do tema. Sugiro a leitura de Top Heavy, publicado em 1995. Nesse pequeno ensaio rigorosamente documentado, Wolff mostra como a ruptura do acordo social que sustentou a políticas de inspiração rooseveltiana promoveu a reversão das tendências à redução das desigualdades de renda e riqueza observada entre 1930 e a meados da década de 1970.

Desde 1973 até 2010, o rendimento de 90% das famílias americanas cresceu apenas 10% em termos reais, enquanto os ganhos dos situados na faixa dos super-ricos – a turma do 1% superior – triplicou. Pior ainda: a cada ciclo, a recuperação do emprego é mais lenta e, portanto, maior é a pressão sobre os rendimentos dos assalariados. Até meados dos anos 1970, é bom relembrar, o crescimento econômico foi acompanhado do aumento dos salários reais, da redução das diferenças entre os rendimentos do capital e do trabalho e de uma maior igualdade dentro da escala de salários. Em artigo publicado na revista Science & Society de julho de 2010, Edward Wolff sustenta que a evolução miserável dos rendimentos das famílias americanas de classe média foi determinada pelo desempenho ainda mais deplorável dos salários. Entre 1973 e 2007 os salários reais por hora de trabalho caíram 4,4%, enquanto no período 1947-1973 o salário horário cresceu 75%. A despeito da queda dos salários, durante algum tempo, a renda familiar foi sustentada pelo ingresso das mulheres casadas na força de trabalho. Entre 1970 e 1988 elas aumentaram sua participação de 41% para 57%. A partir de 1989, no entanto, o ritmo caiu vertiginosamente.

Na convenção do Partido Democrata, em 1936, Roosevelt atacou os “príncipes privilegiados” das novas dinastias econômicas. “Sedentas de poder, elas se lançaram ao controle do governo. Criaram um novo despotismo envolvido nas roupagens da legalidade. Mercenários a seu serviço trataram de submeter o povo, seu trabalho e sua propriedade.”

A política econômica de Roosevelt andou em zigue-zague, mas, feitas as contas, significou a vitória do indivíduo-cidadão sobre o individualismo selvagem dos que enriqueceram à farta nos ciclos anteriores de prosperidade. O cidadão-trabalhador não deveria mais ficar à mercê das idiossincrasias do mercado, dos caprichos do processo de concorrência.

A arquitetura capitalista desenhada nos anos 30 sobreviveu no pós-guerra e, durante um bom tempo, ensejou a convivência entre estabilidade monetária, crescimento rápido e ampliação do consumo dos assalariados e dos direitos sociais. O sonho durou 30 anos e, no clima da Guerra Fria, as classes trabalhadoras gozaram de uma prosperidade sem precedentes. Até meados dos anos 70, é bom relembrar, o crescimento econômico foi acompanhado do aumento dos salários reais, da redução das diferenças entre os rendimentos do capital e do trabalho e de uma maior igualdade dentro da escala de salários.

A experiência histórica mostrou que, sob certas circunstâncias, é possível a manutenção de um equilíbrio relativamente estável e dinâmico entre estas duas tendências contraditórias das sociedades modernas: de um lado, as exigências da acumulação de riqueza abstrata, de outro, os desejos dos homens comuns, que aspiram simplesmente uma vida digna e sem sobressaltos.