Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp
A Conferência de Bretton Woods foi realizada entre 1º e 22 de julho de 1944. A II Guerra Mundial ainda corria solta. Mas, os Estados Unido de Franklin Delano Roosevelt já capitaneavam o projeto de construção da ordem econômica internacional do pós-guerra. Esse projeto foi concebido com o propósito de promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras.
A ideia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de criação de regras monetárias capazes de garantir o ajustamento dos balanços de pagamentos, ou seja, o adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das forças deflacionárias. Tratava-se, também, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.
Keynes, o delegado da Inglaterra, propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais (em bancor) na Clearing Union.
A despeito de sua rejeição à relíquia bárbara, Keynes aceitou a manutenção do ouro como âncora nominal do seu sistema monetário, mimetizando a relação que a moeda bancária mantinha com as reservas metálicas no padrão-ouro clássico. Mas o metal seria uma espécie de “rainha da Inglaterra” do sistema monetário, já que nenhum papel efetivo lhe seria concedido na liquidação das transações e dos contratos – função que seria exercida exclusivamente pela moeda bancária internacional, administrada pelas regras da Clearing Union. É provável que Keynes não estivesse disposto a colocar em risco a confiabilidade do novo padrão monetário, e muito menos pretendesse desvalorizar as reservas-ouro acumuladas pelos Estados Unidos nos anos 20, 30 e 40 (em 1948, os EUA detinham cerca de 72% das reservas-ouro mundiais). Debates travados no Senado revelam que era forte a resistência política dos americanos à abolição do ouro como fundamento da nova ordem monetária internacional.
O Plano Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro enquanto último ativo de reserva do sistema, instrumento universal da preferência pela liquidez. Buscava, portanto, uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios dos balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade – dentro das condicionalidades estabelecidas –, facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser uma característica permanente da nova ordem econômica mundial, como repetiu seguidamente nos trabalhos preparatórios da Conferência de Bretton Woods. O plano – uma utopia monetária – não só era excessivamente avançado para o conservadorismo dos banqueiros privados, mas também inconveniente para a posição amplamente credora dos EUA, pois anularia o poder de seigniorage do dólar como moeda reserva. A faculdade de usar sua moeda como meio de pagamento universal conferiu e ainda vem conferindo aos EUA grande flexibilidade na gestão da política monetária e na administração dos balanços de pagamentos.
Em 1944, nos salões do Hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar – ancorado no ouro – como moeda universal. Talvez por isso o segundo pós-guerra conte a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narre as desditas da reprodução dos desequilíbrios globais e da sucessão de ajustamentos traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.
Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveram ao gesto de 1971 – a desvinculação do dólar ao ouro – e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na desinflação competitiva e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar se fortaleceu, agora obedecendo ao papel dos EUA como demandante e devedor de última instância.
A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros americanos. Na contramão do senso comum, os investidores globais empreendem uma fuga desesperada para os títulos do governo americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os papéis do governo dos EUA oferecem repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas e reservam os tormentos da volatilidade cambial para os incautos que acreditaram nas promessas de recompensa pelo bom comportamento. Escrevi recentemente na Folha de S.Paulo que entre 2003 e 2007, no auge da Grande Moderação – momento em que prevaleceram a baixa inflação, a liquidez abundante e a avidez pelo risco –, as moedas periféricas viveram a ilusão de frequentar os salões da conversibilidade. A crise financeira nascida nas mansões dos pródigos abastados barrou a entrada dos intrusos e mostrou que os saraus das moedas conversíveis não admitem penetras.
Desde o won coreano, passando pelo real brasileiro até a rupia indonésia e o rublo da Rússia, as moedas mais débeis sucumbem ao vendaval de ordens de venda emitidas pelos possuidores de riqueza em busca de proteção e segurança. Mal iniciada a desalavancagem nos mercados centrais, os investidores decidiram formar posições-baixistas nos elos fracos dos mercados globalizados, independentemente dos “fundamentos” que supostamente sustentavam o garboso desempenho das moedas apreciadas. Com elas, capitularam as bolsas de valores e, em alguns casos, os mercados imobiliários excessivamente valorizados. Os hedge funds que operam nos países que dispõem de mercados futuros de câmbio passaram a liquidar suas posições e sair com a grana.
A crise acentua o caráter assimétrico dos ajustamentos dos balanços de pagamentos entre países de moeda forte e aqueles de moeda fraca. Ao contrário do que sustentam alguns analistas, os realinhamentos mencionados das taxas de câmbio não contribuem para reverter os desequilíbrios globais: o déficit americano não se reduz ou se contrai muito lentamente diante da valorização do dólar. Em compensação, a fuga dos ativos e das moedas de maior risco em direção aos títulos de qualidade permite a queda dos rendimentos, abrindo espaço para o endividamento público e, portanto, para políticas anticíclicas mais agressivas. A crise financeira reforça a supremacia do dólar e amplia o poder de seigniorage da moeda americana. Em contrapartida, a pressão externa sobre as economias emergentes torna mais difícil a execução de políticas fiscais e monetárias anticíclicas. Em um ambiente recessivo, a elevação dos juros para defender a moeda é um tiro no pé: deprime ainda mais a capitalização dos ativos mobiliários, afeta o serviço da dívida pública, atinge a saúde financeira das empresas machucadas pelo faturamento minguante e, last but not least, aumenta a prudência dos bancos.
Bretton Woods II, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar conturbações geradas pela decadência americana. Vai, sim, acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalização, impulsionada pela grande empresa e ancorada na generosidade da finança privada dos EUA. O processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias consumistas americanas, causa e efeito da migração da indústria manufatureira para a Ásia produtivista e da acumulação de mais de 5 trilhões de dólares de reservas nos cofres dos emergentes.
Em 2006, o déficit em transações correntes dos EUA bateu na casa dos 800 bilhões de dólares. Qualquer outro país com um “buraco” externo dessa magnitude teria sofrido um ataque contra sua moeda. Se não parece estar à vista uma derrocada do dólar, é imprudente sustentar que o regime dólar-yuan possa reproduzir suas virtualidades depois de sanada a fase aguda da crise global.
As divergências movem-se em torno das razões dos déficits e superávits crônicos: de um lado, os partidários dos desequilíbrios entre poupança e investimento, de outro, a turma dos preços relativos, isto é, os que acusam os parceiros superavitários de manipular a taxa de câmbio. Sem menosprezar a importância do regime de câmbio administrado dos fanáticos exportadores do Oriente, o primeiro grupo reparte a responsabilidade pelos desequilíbrios globais entre dois vícios: a prodigalidade dos americanos, que poupam menos do que investem, e a sovinice dos superavitários (sobretudo, os asiáticos – não só a China, mas também o Japão e outros menos votados), que investem menos do que poupam. O segundo grupo sublinha a importância das estratégias de crescimento superavitários, impulsionadas pela expansão das exportações e ancoradas na manipulação do câmbio.
Bernard Ber, consultor de investimentos, publicou no blog Prudent Bear um artigo interessante, intitulado “Crédito é a chave para a economia de hoje”. O autor apresenta um organograma das relações entre os protagonistas dos processos de desequilíbrio geral da economia globalizada. Introduzi algumas modificações no modelo original.
Uma demonstração prática das relações entre hegemonia do dólar, expansão de crédito, valorização de ativos, inovações financeiras, crescimento econômico e inflação baixa nos EUA e na Ásia emergente. O consultor Bernard Ber coloca em relevo os elementos que, ao mesmo tempo, movem a expansão global e incitam os desequilíbrios. No centro estão a demanda e a oferta de crédito, ou seja, alavancagem das famílias e das empresas produtivas que gastam em consumo e investimento.
Os americanos gastam para adquirir produtos finais e bens intermediários baratos fabricados por empresas localizadas no exterior – muitas americanas –, que buscam competir na arena global com a ajuda do Yuan e desvalorizado e da oferta de mão de obra barata produtivista da Ásia.
Os capitais especulativos apostam na valorização do Yuan e tentam furar os controles impostos pelas autoridades chinesas. Mas seus efeitos monetários – juntamente com os saldos acumulados em conta corrente – são esterilizados mediante a emissão de títulos do Tesouro ou do Banco Central da China, justamente para impedir a valorização da moeda chinesa.
A força do crédito e do dispêndio privado e público nos EUA (os elementos ativos do macrossistema global) tem como contrapartida as posições superavitárias em conta corrente e na conta de capitais, bem como as reservas acumuladas nos emergentes. Esta é a poupança (o elemento passivo) que financia o déficit externo americano.
Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de desequilíbrios mediante o realinhamento entre as moedas é problemática. A dita correção passa necessariamente por uma redistribuição de déficits e superávits entre as regiões envolvidas. Isto exigiria não só a forte reativação das fontes de crescimento domésticas na Europa e no Japão, como também a moderação das estratégias mercantilistas nos emergentes asiáticos. Mas, como Keynes havia previsto em seus escritos preparatórios da reunião de Bretton Woods, tal coordenação de políticas supõe um verdadeiro sistema monetário internacional ou um sistema monetário verdadeiramente internacional.
Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva. Até agora, as soluções que vêm sendo aventadas para a prevenção das crises financeiras nos mercados “securitizados” têm procurado evitar a adoção de medidas capazes de estabilizar as taxas de câmbio e prover financiamento adequado para os desequilíbrios dos balanços de pagamentos. Esse tem sido o tom dos governos e das instituições multilaterais. Tal leniência aplica-se tanto à re-regulamentação dos sistemas financeiros domésticos quanto ao controle dos movimentos de capitais.