O projeto do governo para turbinar o transporte de cargas entre os portos brasileiros colocou em lados opostos os ministérios da Economia e da Infraestrutura: os órgãos divergem sobre como deve ser a abertura do mercado de cabotagem (o nome dado a essa modalidade de transporte) a empresas estrangeiras, que hoje enfrentam barreiras para operar no Brasil. Esse movimento é considerado essencial para o programa econômico liberal da gestão do presidente Jair Bolsonaro.
O ambiente fechado é visto com enorme ressalva na pasta comandada pelo ministro Paulo Guedes, que considera pouco ousado o pacote divulgado até o momento pela Infraestrutura.
A pasta chefiada pelo ministro Tarcísio Freitas também tem em mente que é preciso flexibilizar as regras do setor, e espera com essa e outras medidas triplicar o crescimento do transporte, chegando em 30% ao ano.
Mas os dois ministérios discordam em um ponto: enquanto a Economia entende que as empresas de cabotagem poderiam operar sem ter embarcação própria no Brasil, a Infraestrutura avalia que esse lastro é importante para proteger o mercado da volatilidade externa – uma demanda mais aquecida em outros países poderia provocar uma falta de navios no Brasil.
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, nas últimas semanas, integrantes dos ministérios tentaram chegar a uma proposta mais convergente. De acordo com fontes da Infraestrutura, as conversas podem resultar em um projeto mais flexível em relação ao que já foi apresentado, sem se dobrar por completo à abertura integral que o Ministério da Economia idealiza para o setor.
De acordo com dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT), 162,9 milhões de toneladas foram transportadas em 2018 por meio da cabotagem, um aumento de 4,1% em relação a 2017. Parte desse aumento é atribuída à greve dos caminhoneiros, que fez com que as empresas buscassem mais alternativas de transporte para suas cargas. Atualmente, esse modal responde por 11% do mercado de transporte de cargas no País.
Apesar de ter pouco apelo popular, a pauta da cabotagem mobiliza atores importantes do setor naval. Por exemplo, pesa na conta a posição da Marinha, que durante o processo demonstrou maior apoio ao projeto de Freitas, segundo integrantes das duas pastas ouvidos sob a condição de anonimato.
O tema também chegou às redes sociais de um dos filhos do presidente, o vereador do Rio Carlos Bolsonaro. “Uma nova logística de transportes já é realidade em nosso país!”, postou o filho 02, ressaltando o crescimento esperado para o mercado com o programa.
Concentração
Um dos principais pontos de resistência no Ministério da Economia está relacionado às regras de contratação de embarcação estrangeira para operar no Brasil. No programa formatado pela Infraestrutura, o grupo econômico precisará operar com embarcações de bandeira brasileira para afretar (contratar) embarcação estrangeira – sem precisar suspender a bandeira, ou seja, adptar-se às regras brasileiras, o que reduz custos -, numa proporção de 50%. Ou seja, a cada dois navios, as empresas poderiam usar um navio estrangeiro, sem restrição.
Hoje, as empresas podem usar esses navios, mas só quando não há navio brasileiro disponível para fazer o frete.
“Mantém uma empresa brasileira de navegação que possa contratar uma embarcação de fora para prestar serviço no Brasil, mas tendo lastro – nessa visão que nós temos – em embarcação brasileira fixa no País”, disse o secretário Nacional de Portos, Diogo Piloni, órgão do Ministério da Infraestrutura.
Para integrantes da Economia, esse tipo de “lastro” não deveria existir, pois hiper protege o mercado nacional de cabotagem, hoje concentrado em poucas empresas.
De acordo com o Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos), são três empresas de cabotagem com rotas regulares operando no Brasil. Por outro lado, a possibilidade de o negócio operar apenas com embarcações estrangeiras traz um alto de risco de volatilidade ao setor, acreditam técnicos da Infraestrutura.
A reportagem apurou que integrantes da Economia gostariam de ver no projeto mais situações similares ao que será aplicado para as chamadas “operações especiais” – quando não há equivalente no Brasil.
Por exemplo, na cabotagem para transporte de automóveis. O plano é liberar o afretamento de embarcação estrangeira, suspendendo a bandeira do país de origem, sem qualquer lastro de embarcação própria no Brasil. “Nesse caso, é uma flexibilização total”, observa Piloni. A ideia é que a empresa tenha um prazo de quatro anos para operar dessa forma.
As vantagens para fomentar novos trajetos também serão voltadas aos terminais portuários. Segundo Piloni, o investidor poderá instalar um terminal portuário dispensando o uso da licitação, por meio do contrato de uso temporário, por quatro anos.
Findo o prazo, se a linha se viabilizar, a empresa então participaria dos processos normais de licitações. A ideia é oferecer um período de “teste” da operação, sem que a empresa precise desembolsar de cara um grande volume de recursos, que pode chegar a US$ 50 milhões.
Apesar de o texto do programa já estar bastante adiantado, o governo ainda não bateu o martelo se as novas regras entrarão em vigor por meio de medida provisória ou se a opção será por enviar um projeto de lei ao Congresso. Por enquanto, especialistas e mercado local têm avaliado positivamente o que já foi anunciado pelo Ministério da Infraestrutura, incluindo as contrapartidas pensadas para a abertura do setor.
“Eu pessoalmente acho que não tem de abrir de uma vez, país nenhum do mundo abre sua cabotagem totalmente”, disse o coordenador adjunto do Centro de Excelência em Logística e Supply Chain da FGV (FGVcelog), Manoel Reis, para quem o projeto apresentado já “abre bastante” o mercado da cabotagem.
Para o presidente da Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem (ABAC), Cleber Lucas, a ampliação das regras de afretamento é bastante significativa e, diante das contrapartidas elaboradas pelo Ministério da Infraestrutura, capaz de equilibrar bem o mercado brasileiro com o do exterior. “Mercado de navegação é muito líquido, se se desenvolve mercado local só com estrangeira, num primeiro aquecimento da economia mundial esse ativo sai daqui e vai direto para mercados mais interessantes”, avalia Lucas.
Fonte: Estadão