A pandemia de covid-19 provou que colocar inovação no DNA de uma empresa pode significar sofrer menos durante uma crise. Companhias de diversas áreas de transportes que já tinham equipes dedicadas a “pensar diferente” viram agora os resultados de investimentos feitos ao longo dos anos.
“A grande maioria das organizações trabalhava até então com a inovação de forma experimental”, disse Oliver Cunningham, sócio da KPMG. Nos últimos tempos, os projetos se voltaram para a atividade principal da empresa e não mais apenas para temas secundários. “A indústria percebeu que vai ter de mexer debaixo do capô, no chassi, na suspensão… não apenas na pintura.”
Inovação no setor de transportes
Isso porque a crise obrigou as empresas a tomarem mais risco, sob ameaça de morrerem por inanição. As companhias aéreas, por exemplo, ficaram no topo do ranking das mais prejudicadas pela pandemia. O setor viu a demanda por voos nacionais cair mais de 90% em abril e ainda hoje enfrenta queda de 60% no número de passageiros na comparação com um ano atrás. Para contornar o problema, empresas como a Gol tiveram de ser ágeis e buscar soluções imediatas. A empresa colheu frutos de investimentos tecnológicos, que sustentaram a ocupação das aeronaves perto de 80%, mesmo no auge da crise.
As organizações trabalhavam até então com a inovação de forma experimental. Agora a indústria percebeu que vai ter de mexer debaixo do capô, no chassi, na suspensão… não apenas na pintura.
No transporte rodoviário, as concessionárias buscaram alternativas até para o treinamento de pessoal, como foi o caso da EcoRodovias. A fabricante Marcopolo encontrou rapidamente uma forma de redesenhar o ônibus para atender às novas exigências dos passageiros. Nos dois casos, as respostas rápidas vieram de braços de inovação, que foram reforçados nos últimos anos.
Uma das barreiras que impedem a inovação de deslanchar nas empresas é a falta de previsibilidade, sobretudo de receitas para os projetos. “Há uma diferença entre gerar receita e gerar valor que precisa ser considerada”, afirma Cunningham. Olhar apenas a geração de receita pode ser eficiente, mas pode envelhecer o portfólio da companhia. Priorizar apenas a geração de valor pode fazer o grupo ficar sem receita para alcançar os projetos. Alcançar o equilíbrio, diz, é o que os executivos do mundo estão buscando.
Veja a seguir exemplos de empresas que já investiam em inovação e conseguiram amenizar os prejuízos causados pela pandemia antecipando os projetos em desenvolvimento.
Quem iria voar, quando havia medo até de abrir a porta de casa e respirar o ar da rua? Foi com uma ameaça dessa dimensão que o setor aéreo esteve no topo do ranking dos que mais sofreram com a pandemia em todo o mundo. Enfrentando uma queda brusca da demanda por voos, a Gol aproveitou seu banco de dados robusto para otimizar a ocupação das aeronaves.
Seu sistema de inteligência artificial fez com que o uso dos aviões ficasse perto de 80% mesmo em abril, o pior mês enfrentado pelo setor. No mundo, a taxa média de ocupação das aeronaves no segmento doméstico ainda estava em 64,2% em agosto, segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata).
Como as concorrentes, a companhia teve de deixar aviões no solo. Mas os que voavam estavam praticamente cheios. Mesmo assim, os custos de operação eram altíssimos – a área chegou a queimar R$ 6 milhões por dia, em abril. Porém, em um cenário tão dramático, sua realidade era a menos pior.
Esse foi apenas um dos resultados conquistados pelo grupo diante dos investimentos cotidianos em tecnologia e inovação. Em 2018, a empresa criou o Gol Labs, laboratório de inovações que tem governança separada da equipe de tecnologia da própria companhia. O objetivo é alavancar a cultura de inovação em todas as áreas. “Os projetos precisam gerar satisfação do cliente, trazer receita ou reduzir custos”, explicou Eduardo Bernardes, vice-presidente comercial e de marketing da Gol.
A pandemia acelerou na prática inovações que a empresa vinha buscando. Antes, entre 70% e 75% dos check-ins eram feitos pelos canais digitais. Na pandemia, o autoatendimento chegou a 90% em alguns aeroportos. A empresa trouxe ainda novas soluções para o período de crise, como o check-in via WhatsApp.
Outra mudança adotada bem antes da pandemia deixou a empresa à frente das concorrentes. Em 2016, a Gol apostou que seus passageiros iriam preferir aproveitar o entretenimento a bordo em aparelhos pessoais, como notebooks, tablets e celulares. Considerando o custo de manutenção dos equipamentos na aeronave e o peso extra, a aérea optou por não colocar monitores em seus aviões. Quem quisesse se distrair, teria de se conectar ao sistema Gol Online, que conta com canais de TV ao vivo, filmes, séries e pacotes de acesso à internet. Alguns serviços são pagos, outros não.
A companhia não divulga quanto fatura com o sistema, mas o Gol Online já foi acessado por 15 milhões de passageiros. Agora, para diminuir o risco de contaminação pelo coronavírus, as concorrentes tiveram de desligar suas telas.
Novo modelo de ônibus em 60 dias e possibilidade de novos mercados
A pandemia levou a Marcopolo a dar um “cavalo de pau” em seus negócios e o grupo tirou da cartola, em junho, a plataforma BioSafe – na época, 80% da frota dos clientes da fabricante de ônibus estava parada. O sistema promete uma série de soluções para conter a propagação do vírus nos veículos e tentar dar mais segurança ao transporte coletivo.
As ferramentas ganharam corpo em apenas 60 dias e foram o primeiro resultado do Marcopolo Next, divisão de inovação voltada a soluções em mobilidade. De lá para cá, a empresa produziu 1.500 veículos com pelo menos um item da plataforma BioSafe. Do total, 734 foram enviados ao mercado externo, sobretudo Chile, Argentina, Peru, Angola e Paraguai. No Brasil, a Viação Ouro e Prata, no Rio Grande do Sul, é a principal cliente hoje. Empresas como Randon e ArcelorMittal também utilizam a tecnologia da Marcopolo para o transporte de seus funcionários.
Inovação no setor de transportes
Entre as inovações estão um novo posicionamento de poltronas, com dois corredores, cortinas de proteção antimicrobianas, desinfecção dos veículos por névoa e uso de raios ultravioletas nos banheiros. Os equipamentos podem ser adaptados também nos ônibus mais antigos. O custo de todo o kit representa entre 18% e 20% do valor de um ônibus.
O responsável pela área de inovação da Marcopolo, Petras Amaral, conta que a divisão começou a ser estruturada no ano passado, quando deixou de ser subordinada ao segmento de estratégias e passou a responder à presidência. “A área ganhou foco estratégico.”
A equipe agora pretende dar passos mais largos, inclusive com projetos fora do foco principal da empresa. “Com a pandemia, há uma tendência de reconfiguração das cidades”, afirma. Surge, assim a oportunidade de novos projetos sobre trilhos, com VLTs e desenvolvimento de softwares rumo a uma integração também tecnológica dos modais, colhendo aprendizados com o efeito “Uber” nos transportes.
Inovação no setor de transportes
A queda no tráfego não foi o único obstáculo enfrentado pelas concessionárias de rodovias nos últimos meses. No meio do caos da pandemia, a EcoRodovias, por exemplo, tinha dificuldade até nas atividades básicas, como treinar os operadores de cabines de pedágio. A empresa teve de colocar em prática o treinamento virtual, feito com um simulador desenvolvido internamente desde 2018. “Ele agiliza muito o processo de treinamento”, disse o diretor de Tecnologia da EcoRodovias, Afranio Spolador.
O investimento inicial foi pequeno: R$ 40 mil. Nessa primeira fase, o empregado consegue conhecer os processos que precisa realizar. Porém, o objetivo é desenvolver um sistema mais complexo, que teste o profissional, quase como em um jogo. O investimento total será de R$ 400 mil. Idealizada pelo coordenador de sistema rodoviário, Roberto Kimura, a novidade já começou a ser usada para fazer a reciclagem de 350 operadores.
Para Spolador, a experiência contesta a afirmação de que é difícil inovar no setor de concessão, por se tratar de uma área muito regulada. A ideia do simulador surgiu no 1.º InovaEco, programa criado para incentivar inovações internas. O concurso selecionou quatro propostas, de um total de 110 recebidas, que começaram ser desenvolvidas neste ano.
Para levá-las adiante, a área de inovação da EcoRodovias tem orçamento anual de R$ 2 milhões. Outros projetos contaram com a ajuda da equipe, como um braço mecânico acoplado a um caminhão para lavagem de placas e uma cabine de autoatendimento, batizada de Olivia, que ganhou mercado no ano passado.
A empresa administra 10 concessões de rodovias, que somam mais de 3 mil quilômetros de extensão. No pico da crise, em abril, chegou a registrar queda de 30% no tráfego, indicador que agora está na casa dos 15% hoje.
Além de contêineres e grãos, blockchain e apps viram rotina nos portos
O transporte marítimo se adaptou rapidamente durante a pandemia – e o motivo não foi apenas o aumento nas exportações das commodities agrícolas, impulsionadas pela demanda global por alimentos e pelo dólar favorável. O setor colheu agora investimentos feitos durante anos para automatizar as operações.
“Várias ferramentas digitais que já vinham sendo utilizadas e tecnologias, como o blockchain (espécie de livro contábil público que certifica transações), tiveram crescimento significativo na pandemia”, afirma Claudio Loureiro, diretor-executivo do Centro Nacional de Navegação Transatlântica (Centronave), entidade que reúne as maiores empresas de navegação de longo curso atuando no Brasil.
Uma prática comum do setor que mudou nos últimos tempos é booking de carga presencial – a reserva de espaço nos navios para o transporte. Como os check-ins das companhias aéreas, havia várias plataformas que permitiam automatizar o processo. Com a pandemia, seu uso explodiu.
A dinamarquesa Maersk, por exemplo, viu seu aplicativo, o Maersk App, bater recordes de uso. Em todo o ano de 2019, o sistema movimentou R$ 108 bilhões (US$ 20 bilhões) no mundo. Foram registradas, em média, 70 mil transações por semana, nas primeiras cinco semanas deste ano. Com a quarentena, a empresa reportou 130 mil transações de negócios, em apenas uma semana de abril.
No Brasil, as reservas online da Maersk dobraram e ficaram acima de 75% de todo o volume de carga não perecível da Maersk na semana de 15 de abril, no auge da pandemia.
O desafio hoje é vencer limitações impostas pelos órgãos de fiscalização. No caso brasileiro, de fevereiro até outubro, 123 embarcações ficaram em quarentena no País. “Manter um navio parado por 14 dias custa milhões de dólares”, diz Loureiro. O setor dialoga agora com as agências reguladoras, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para evitar essas paralisações totais e isolar apenas os tripulantes contaminados.
Fonte: Estadão