De maneira inédita no país, em um evento aberto exclusivamente para mulheres, mais de duzentas profissionais do mercado marítimo se reuniram para debater os desafios de carreira e o combate ao assédio no ambiente de trabalho.
Presencialmente, no Rio de Janeiro, e on-line, elas participaram da primeira edição do “Horizontes Femininos”, que se posicionou como o primeiro fórum brasileiro a oferecer um espaço para as vozes femininas da navegação.
Mulheres das Marinhas Mercante e de Guerra compartilharam experiências durante o encontro que aconteceu este mês no Teatro Adolpho Bloch, no bairro da Glória, região central do Rio. O “Horizontes Femininos” contou com a participação de representantes de diversas áreas e cargos, como comandantes de embarcações, oficiais de máquinas, executivas de grandes companhias, além da diretora da ANTAQ, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, e outras profissionais associadas ao suporte das operações marítimas e portuárias.
O encontro foi uma correalização da Norsul, empresa que detém cerca metade da participação no mercado de cabotagem de carga seca no Brasil (48% do share, em 2023), com a WISTA BRAZIL, associação que busca promover a equidade de gênero no setor da indústria marítima.
Na abertura, foram citados dados de uma pesquisa global do LinkedIn, que mostra: uma em cada seis mulheres pede demissão por conta de assédio em suas áreas; 35% vivem sob constante medo; e 30% sentem falta de confiança em si e nos outros. Aline Carvalho, gerente executiva da área de Gente e Gestão da Norsul, foi a mediadora dos painéis e mestre de cerimônias.
Para o primeiro painel sobre “Assédio e seus impactos na carreira da Mulher” subiu ao palco Maíra Liguori, diretora na consultoria Think Eva e na ONG Think Olga, especializada em equidade de gênero, há dez anos referência no combate ao assédio sexual. Maíra falou sobre os conceitos de assédio, campanhas, histórico da Think Eva e explicou que hoje já existe a lei 14.457/22, que obriga as empresas privadas a tomarem parte no combate ao assédio, mantendo vigilância, monitoramento, criando um canal de denúncia, um RH mais empático, entre outras ações, inclusive educacionais, com o objetivo de tornar o ambiente mais confortável, seguro e inclusivo para as mulheres.
Maíra comemorou a existência da lei e explicou que é imperativo o posicionamento das companhias, pois uma pessoa que é treinada no ambiente do trabalho passa a ter um novo olhar na sociedade, tanto para o assédio sexual quanto moral. O assédio moral tem potencial para causar danos físicos e psicológicos tão intensos quanto o sexual, além de atrapalhar o ambiente profissional, colocar o cargo e o futuro das profissionais em risco. “Assédio moral é um exercício de poder e ele acontece de três formas: vertical, com diferença de posições hierárquicas, usualmente a mulher sendo subordinada a um homem; horizontal, entre colegas de trabalho; e misto. Importante dizer que a habitualidade da conduta e a intencionalidade são indispensáveis para se caracterizar como assédio moral”, reforçou Maíra.
No bate-papo, ela explicou ainda que o assédio não é um problema meramente individual ou político, de esquerda ou de direita. “É um problema de gênero e reproduz práticas enraizadas na sociedade.”
Já o assédio sexual, explicou, tem origem na chantagem e na intimidação. “Consentimento é a palavra-chave para definir o que é assédio. Como mulheres, precisamos aprender a consentir e a não consentir. Não fomos ensinadas a dizer que não queremos que falem conosco desta ou daquela maneira. Não nos ensinaram a nos posicionar de forma firme”, destacou a diretora na consultoria Think Eva e na ONG Think Olga.
Uma pesquisa global do LinkedIn sobre o tema apresentou que 47% das mulheres no mercado de trabalho sofrem assédio e apenas 5% denunciam. “Romper com o ciclo do assédio é responsabilidade de todos. Não queremos privilégios, queremos direitos e oportunidades na mesma proporção que os homens”, disse Maíra, que finalizou: “Não podemos falar de assédio sem falar de raça. Mulheres negras sofrem ainda mais assédio do que mulheres brancas. Precisamos nos posicionar, reagir e denunciar”.
17% da força de trabalho do setor aquaviário são mulheres
No painel seguinte, Aline chamou ao palco Flávia Takafashi, diretora da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), juntamente com Luciana Suman, chefe de máquinas e diretora de relacionamento institucional da WISTA Brazil, para falar sobre o “Guia de Enfrentamento ao Assédio no setor Aquaviário”. A iniciativa é conjunta do Ministério dos Portos e Aeroportos (MPor) e da ANTAQ, elaborada em parceria com a WISTA Brazil e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O Guia será um manual de boas práticas para combater o assédio contra mulheres que trabalham nos portos e na navegação brasileira. Flávia explicou que a ideia nasceu de uma apresentação que a WISTA Brazil fez para a ANTAQ como um acordo de cooperação, para falar sobre a participação de mulheres do setor. Assim surgiu a primeira entrega com a parceria: uma pesquisa, realizada em março de 2023, que descobriu que apenas 17% da força de trabalho do setor aquaviário é de mulheres. Desse total, apenas 16,7% estão em cargos executivos, 22,5% em cargos de gerência e 16,4% em cargos operacionais. “Foram cerca de quatro a cinco meses falando sobre o tema assédio, buscando indicadores e estruturando a criação do projeto do Guia, que incluiu roda de conversas e oficinas. Pela primeira vez, o tema está sendo tratado de forma sistêmica. É claro que ele é voltado para o setor aquaviário, mas entendemos o guia como uma ferramenta de Estado, onde falamos sobre pessoas e ajudamos mulheres de um modo geral. Estamos muito orgulhosos do trabalho que realizamos”, concluiu Flávia.
Desafios da carreira da mulher no mar
No último debate do dia, o “Horizontes Femininos” contou com a participação de mulheres do setor aquaviário — de diversas áreas e cargos — para falar sobre temas como empoderamento feminino, liderança, diversidade, maternidade, carreira e assédio, além do preconceito que ainda existe neste mercado para com as mulheres e a evolução da presença feminina em um setor majoritariamente masculino.
“A mulher, quando entra no setor marítimo, precisa se provar. Constantemente, é cobrada e já inicia a carreira, muitas vezes, desacreditada. É preciso estar preparada psicologicamente para vencer os desafios. Conheço mulheres que desistiram da carreira porque sofreram assédio”, pontuam as participantes.
Entre aquelas que se dispuseram a compartilhar suas perspectivas inspiradoras sobre superação, liderança e diversidade, estão: Veridiany Silva, condutora de máquinas e autora do livro “Muito Além do Abuso: O Renascer de uma História”; Fabiana Durant, capitã de longo curso e diretora no Centro de Capitães da Marinha Mercante, embaixadora de IMO no Brasil, além de líder da gerência de operações Ship-to-Ship no Porto Sudeste do Brasil, na Baía de Sepetiba; e a eletricista Cristiane dos Santos, que administra o grupo Mulheres Aquaviárias e que tem experiência em projetos navais, entre outras.
No fórum, elas foram questionadas sobre os maiores desafios que já enfrentaram em suas carreiras, e algumas respostas aparecem com frequência em pesquisas, não importando o setor ou a área daquele grupo de pessoas. Alguns dos principais temas que trouxeram e que mais as incomodam estão: a dúvida de colegas ou líderes homens se vão dar conta do trabalho; como conciliar a carreira e a maternidade; medo de ser assediada, já que, muitas vezes, embarcam para passar semanas no mar e são a única mulher a bordo nos navios. “O assédio paralisa. Já me escondi debaixo da cama, dentro de camarotes, por medo de sofrer algum tipo de abuso”, contou uma delas.
Possíveis soluções para os desafios
Quando questionadas sobre qual poderia ser a solução para cada um dos temas apresentados, foram unânimes ao afirmar que visibilidade e representatividade são muito importantes. Também citaram que um olhar mais humanizado para o desenvolvimento de pessoas, o apoio entre as mulheres para a divulgação dos seus trabalhos, entre outros.
Como encerramento para o público que acompanhou o evento, as mulheres demonstraram o interesse em fazer crescer a iniciativa, lançar novos encontros, estimular que mais empresas apoiem o tema. “Dada a potência e impacto, reforçando a relevância de colaboração entre as empresas do setor, queremos seguir mobilizando as mulheres do mercado com momentos de profunda reflexão, em breve, com novos encontros onde poderemos juntas debater caminhos, propor e comprometermo-nos com ações.
Queremos fazer com que esta pauta seja recorrente, contando com o protagonismo de tantas mulheres com vontade de impactar o mundo”, destacou Aline. “Esta primeira edição do ‘Horizontes Femininos’ nos deixou muito orgulhosas, ao testificarmos a força a coragem da mulher no setor aquaviário. Não iremos parar por aí! Juntas, podemos fazer muito!”, finalizou Priscila Lopez, gerente da área de Desenvolvimento e Comunicação da Norsul.