Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp
Na revista New Yorker, John Lanchester, autor do livro How to Speak Money, escreveu um artigo instigante a respeito das relações entre Economia e Humanismo.
Em 1974, escreve Lanchester, sete países africanos juntaram forças para combater a Cegueira dos Rios, doença tropical provocada pela picada de insetos. A Organização Mundial da Saúde supervisionou o programa, um sucesso retumbante que impediu a cegueira de milhares de africanos pobres.
Convidados para avaliar os resultados, economistas do Banco Mundial não foram capazes de afirmar se valeu a pena o esforço coletivo. Na opinião da turma da ciência econômica, a análise de custo-benefício foi “inconclusiva”. As pessoas beneficiadas eram tão pobres que preservar sua visão tem baixo impacto monetário.
No Brasil de Temer submetido ao poder dos “mercados”, o desemprego não cede, a extrema pobreza avança, a mortalidade infantil progride. Os candidatos centristas e seus economistas não conseguem escapar da carceragem do ajuste fiscal que lançou o país na depressão deflagrada em 2015.
Veja o caro leitor: a viralatice fiscal ganhou tal força nas manifestações que os “centristas” ousam desrespeitar as recomendações do FMI. Outrora famigerado, o organismo de Bretton Woods, sem abandonar suas proverbiais prudências, exercita suas ousadias.
Em documento publicado em julho do ano corrente, o Fundo reforça a recomendação já prolatada em outras ocasiões: “a composição dos planos de consolidação em termos dos diversos instrumentos fiscais é importante. Por exemplo, um corte no investimento tem impacto mais negativo sobre o crescimento em comparação a um corte nos gastos primários. Assim, as autoridades devem procurar preservar o investimento público para apoiar o crescimento e o emprego.” O novo texto insiste nas recomendações proclamadas na edição de outubro de 2014 do World Economic Outlook, propostas já comentadas nas páginas da nossa revista.
No debate brasileiro, os ditos especialistas dizem e repetem que os desvalidos e os mais pobres, na defesa de seus interesses, estão a atacar o orçamento. Já os sabichões, esses não, eles encarnam a racionalidade, exercida do alto de seus escritórios almofadados.
Devastados pelo desemprego, pela insegurança e pela fome, indivíduos de carne e osso respondem com suas capacidades à avalanche de “fake ideas” disseminadas pelos ditos “especialistas”. Há quem se disponha a atemorizar os brasileiros desgraçados com os horrores do calote da dívida ou da hiperinflação, caso a reforma da Previdência não seja aprovada.
As arengas dos especialistas se acovardam ao enfrentar os escandalosos desequilíbrios de poder e riqueza. Diante da reação dos perdedores às reformas propostas, resta aos intelectuais do establishment prosseguir na tradição de empregar palavras sem conceito e gritar “populismo!!!”. Isso quando não recomendam mais sacrifícios. Como sentencia a parêmia sertaneja: “os relho é que vareia, os lombo é sempre os mesmo”.
Sou tentado a mudar o registro e buscar apoio de Jean Paul Sartre e Adam Smith para entender os desencontros entre, digamos, as elites bem-pensantes e o povaréu mergulhado nas trevas do populismo!!! Na “Crítica da Razão Dialética”, Sartre se recusa a conceber o homem como uma coisa.
A despeito das armadilhas das estruturas socioeconômicas que tentam transformar o cidadão em um serviçal da rotina, dos costumes e do conformismo, o homem da razão dialética se caracteriza pelo impulso incontido à superação de uma situação que o transformaram naquilo que pretendem que ele seja. Para desapontamento dos pretensos artífices da “coisificação”, mulheres e homens estão condenados à liberdade.
O iluminista e filósofo moral Adam Smith define o indivíduo a partir da liberdade exercida mediante a propensão humana natural para a troca. A motivação egoísta do intercâmbio de mercadorias, no entanto, está ancorada na simpatia mútua, na sociabilidade enraizada na inclinação benevolente para o outro.
Nas trevas da economia vulgar, dogmática que nos assola com um rosário de banalidades, a versão smithiana do indivíduo afetivo e socializado degenerou nas hipóteses “científicas” que suprimem as diferenças entre os papéis sociais dos indivíduos concretos para aprisioná-los na má abstração do homem racional ocupado em maximizar sua escala de utilidades.
Para os iluminados do anti-iluminismo, a história das sociedades deve culminar na adesão incondicional ao cálculo utilitarista para extirpar definitivamente os artificialismos da política. A política da Polis, essa invenção de instituições e espaços populistas, sempre empenhada em colocar empecilhos à ação racional dos indivíduos. Formas “naturais” e também superiores da sociabilidade – os nexos monetários e mercantis – aparecem como as condições para se alcançar simultaneamente a Liberdade, a Igualdade e a fruição da máxima Utilidade para todos. A fórmula do mercado não só garante – diante das restrições de recursos e da tecnologia – os melhores resultados do metabolismo econômico, como também oferece o modelo ideal para as relações entre governantes e governados.
Apanhada às pressas de alguma interpretação da filosofia da história de Hegel, essa gororoba é a glória, mas também a miséria do novo pensamento das classes cosmopolitas e dominantes, que espalham a sua descoberta de Nova York a Jacarta, de Londres a Buenos Aires. Glória, porque, finalmente, foi possível arrebatar o estandarte do reformismo das mãos dos adversários que julgavam ter a sua posse definitiva. Miséria porque, sob muitas máscaras, o jogo do mercado desregulado ameaça os fundamentos da ordem estabelecida, ao promover o fracionamento das sociedades, cada vez mais divididas entre os integrados e os excluídos, ao mesmo tempo em que fomenta a busca desesperada por formas de identificação “primárias”, religiosas, étnicas e “tribais”, mutuamente hostis e declaradamente inimigas dos valores republicanos.