Economia Instituto Logweb – Ed. 178

A CARNE É FRACA OU OS ARREGANHOS DAS BUROCRACIAS

Restaurada a democracia nos idos de 1985, os brasileiros imaginaram, ao menos alguns, que a nova ordem estaria amparada em instituições que acomodassem o princípio da interdependência e do equilíbrio de poderes e exigissem comportamentos sóbrios das burocracias encarregadas de vigiar e punir.
A Operação Carne Fraca denuncia as fragilidades que hoje infestam a República Federativa do Brasil.
Nas repúblicas modernas – se é que temos por aqui alguma coisa parecida – figuram entre as cláusulas pétreas aqueles relativos à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração da coisa pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei. Parece banal, mas é necessário repetir: é a consciência do dever legal que garante legitimidade à ação dos agentes do Estado – nunca a invocação narcisista e autorreferida às próprias virtudes. Na Terra Brasilis a coisa anda mal, inclusive porque os agentes do Estado, em todas as esferas, são useiros e vezeiros em colocar seus sentimentos (e, digamos, impulsos) pessoais acima da lei.
Esses sistemas de poderes e garantias ancorados na lei é o núcleo central do Estado moderno. É isto que o obriga a punir – no exercício do monopólio da violência – as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro. Não há como pensar na sobrevivência da sociedade dos indivíduos-cidadãos sem imaginar a presença do poder repressivo do Estado. O descumprimento de esse dever pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel.
O Estado brasileiro ocupa-se com vigor da produção da insegurança: omite-se diante das tragédias do desemprego, da falta de saúde e de moradia e recua diante da violência dos criminosos. O Estado mostra-se negligente com a vida dos seus cidadãos porque é pressuroso na submissão ao império do particularismo, hoje comandado pelos arreganhos dos prepotentes. Como é de conhecimento geral, os ferrados morrem como moscas, sem atendimento médico, sem oportunidades de vida ou pelas armas dos assassinos à solta. Tal descaso é cúmplice da violação sistemática dos códigos da cidadania moderna, que foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista e reacionário dos que se imaginam com mais direitos e poderes. Estes, no Brasil, invariavelmente imaginam uma sociedade sem a presença de um Estado democrático e forte, capaz de intimidar os que pretendem – ricos ou pobres – se impor através da intimidação da maioria.
No mundo da rivalidade entre grandes empresas e da inevitável mediação do Estado nas disputas entre os competidores privados, a exceção tende a se tornar a regra. Tal estado de excepcionalidade deságua na proliferação legislativa casuística e na ameaça permanente ao caráter abstrato e universal da norma jurídica. A contradição se torna aguda: de um lado, a liberdade dos indivíduos no mercado exige a independência do Judiciário e a disciplina das forças policiais, certeiros no cumprimento da lei e cuidadosos em seus procedimentos, de outra parte, a “corrupção” engendrada pela concorrência econômica inexoravelmente mediada pelo Estado, estimula a formação de correntes de opinião que propugnam por formas primitivas de punição e de vingança.
Isso suscita a legitimação de tropelias e ilegalidades praticadas pelas burocracias públicas e promove a subversão da hierarquia entre os poderes do Estado. As empresas corrompem a política e, assim, degradam o instituto da representação popular. Procuradores e policiais fazem gravações clandestinas ou inventam provas e assim corrompem o princípio da legalidade e da impessoalidade nos atos da administração pública. Nas altas esferas do Olimpo midiático, a imprensa diária dispara a cortina de relâmpagos, trata de manipular a opinião pública, atemorizar juízes e fomentar a arbitrariedade dos esbirros e beleguins.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp.