O Protecionismo Americano

As manchetes proclamam a iminência de uma guerra comercial deflagrada pela decisão protecionista de Donald Trump. À imposição de tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio seguiu-se a escolha de US 50 bilhões de produtos chineses escolhidos para sofrer uma sobrecarga de impostos aduaneiros. Isso suscitou reações da China, que promete taxar soja, aviões e outros bens e commodities.
A boa história econômica ensina que os Estados Unidos têm uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório sobre as Manufaturas de Alexandre Hamilton, publicado em 1791. Hamilton, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, fez a crítica das teorias fisiocráticas que postulavam a superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de produtividade e de maior progresso da própria agricultura.
Pérfidas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais.
Já dominado pelos interesses financeiros da City, o liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos.Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa, ensinam as cartilhas da dialética elementar para positivistas teimosos.
No livro Origens da Democracia e da Ditadura, Barrington Moore Jr analisa a Guerra Civil Americana a partir das relações contraditórias, mas não opostas, entre o Sul escravagista-livre-cambista e o Norte em processo de industrialização, turbinado com mão de obra assalariada e fortes doses de protecionismo.
Nas primeiras décadas do século XIX havia complementaridade entre o Sul escravagista e primário-exportador e a industrialização incipiente. No movimento recíproco de expansão das “duas economias” os requerimentos da indústria, do assalariamento e da ampliação do mercado entraram em descompasso com a economia livre cambista da mão de obra escrava. A contradição foi encaminhada para as terras do Oeste. Sob o manto protetor da distribuição gratuita de terras do Homestead Act, o desenvolvimento e a consolidação da agricultura familiar no Oeste iriam configurar um novo espaço para a expansão das relações mercantis.
O Oeste tornou-se provedor de alimentos e matérias-primas minerais e, ao mesmo tempo, ampliava o mercado para os produtos industrializados do Norte-Nordeste. A febre de ferrovias e canais, também subsidiada pela doação de terras públicas, aplainou o comércio entre as regiões, juntamente com as proezas da alavancagem financeira do free-banking, proezas periodicamente acometidas de crises agudas. Assim, foram abertas as fronteiras da expansão interna do capitalismo americano no século XIX. A partir da Guerra Civil, foi deflagrada a Era do Empreendedorismo Criativo dos Barões-Ladrões.
Paul Bairoch, Douglas North, Charles Kindleberger e Carlo Cippola registram a persistência das práticas protecionistas americanas ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, até o fim da Segunda Guerra. O aumento brutal das tarifas promovido pelo Smoot and Hawley Act em 1930 inaugurou uma sombria temporada de competição protecionista.
No movimento de desviar o desemprego para o território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933.
Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.
A contração do comércio mundial, provocada pelas desvalorizações competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a práticas de comércio bilateral e à adoção de controles cambiais. Na Alemanha nazista, tais métodos de administração cambial incluíam a suspensão dos pagamentos das reparações e dos compromissos em moeda estrangeira, nascidos do ciclo de endividamento que se seguiu à estabilização do marco em 1924.
Na posteridade da Segunda Grande Guerra, o projeto americano de construção da ordem econômica internacional foi concebido sob inspiração do ideário rooseveltiano. Tinha o propósito de promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras e de crises de balanço de pagamentos. A ideia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de criação de regras destinadas a garantir a expansão do comércio e o ajustamento dos balanços de pagamentos, mediante o adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das forças deflacionárias e as tentações do protecionismo.
Desde o fim dos anos 1970, a reestruturação do capitalismo envolveu mudanças profundas no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e, sobretudo, nas relações entre o poder da finança e a soberania do Estado. O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da rivalidade entre empresas, trabalhadores e nações, disputa feroz inserida em uma estrutura financeira autorreferencial, ocupada em satisfazer seus próprios apetites.
Em suas consequências, a severa recessão que machucou o planeta em 2008 denuncia as fragilidades do arranjo político-econômico da globalização. Não por acaso, ímpetos protecionistas irromperam em todos os cantos da Terra. O gesto de Trump é a repetição como farsa da tragédia encenada pela reforma tarifária imposta pelo Smoot-Hawley Act.
Os comentários dos especialistas e as matérias do jornalismo anunciam em tom alarmista: não vai dar certo!! Antes de arriscarem suas reputações com previsões, tão acuradas quanto desacreditadas, deveriam indagar de seus botões: o que deu errado?

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Doutor em economia. Autor de vários livros e professor titular da Unicamp e Facamp